terça-feira, 31 de agosto de 2021

 

Foto: Reinaldo Coutinho - Gravura: Acervo Pof. Antonio Jose Mambenga

A PROCISSÃO DOS MORTOS

 

Cada povo tem sua história que se bifurca entre o patrimônio material e imaterial, formando assim um acervo Cultural de grande importância para criação da identidade local.

A cidade de Valença do Piauí, guarda no seu contexto histórico muitas lendas que se formaram ao longo do tempo, dentre elas a Procissão dos Mortos

 

A PROCISSÃO DOS MORTOS

A procissão dos Mortos, destaca-se como uma das mais conhecidas lendas da cidade de Valença do Piauí, pelo contexto e antiguidade que se insere, cujo enredo remota ao início do século XX. Sobe-se, portanto, que seu auge foi no período que a igreja tinha como Vigário o Cônego Acylino. E se o Cônego chegou em Valença em 1879 o episódio mais marcante ocorreu neste período.

Segundo Dona Maria Juvina, matriarca da família e Juvina, numa certa noite de quarta-feira da Semana Santa, conhecida popularmente como “Quarta-feira de Trevas”, uma moradora de rua do Maranhão, por nome Prisilina, estava com insônia mexeu-se, remexeu-se na velha cama coberta de couro de boi e não conseguia dormir. Debulhou o rosário Santo de Maria e o sono não chegava. Inquieta, resolveu ir até a janela da casa que dava visão para rua e percebeu um longo silêncio, mas um silêncio tão grande como se a cidade estivesse morta, nem mesmo os grilos que habitavam nas margens do Rio Caatinguinha davam sinal de vida, bem como, se a própria correnteza do rio estivesse também repouso. Isso deixou Prisilina em estado de choque, principalmente por ser responsável pela transmissão das boas e más notícias da cidade, mesmo assim, seu olhar convergia para Ponte Velha, Largo da Igreja Nossa Senhora do Ó Atual São Benedito atingindo até a Cadeia Velha e Casa de Dona Maria Luiza, onde nem mesmo a escrava Elentéria dava sinal de vida.

De repente, escuta bem distante, o som de uma banda de música executando hinos sacros, dentre eles...

- Prisilina, continuou na janela contemplando a rua, mais achando estranho a melodia executada pela banda de música, que se aproximava a cada instante. Sem querer, mesmo sendo uma mulher de coragem, sentia uns calafrios, mas a curiosidade era tamanha que a coragem superava o medo e à medida que o tempo passava o som se aproximava e ela já não se suportava de tanta ansiedade para saber o que era. Para aguçar mais a curiosidade, sentiu o cheiro forte de incenso de igreja, cuja fumaça subia ao céu como se quisesse tocar as estrelas. Para surpresa sua, observou um pálio, protegido por quatro arandelas e sobre um padre conduzindo um ostensório acompanhado por uma banda de música com que em vez de calça e camisa usavam túnicas brancas. Após a banda os devotos que formavam uma procissão, todo vestidos de túnicas brancas e conduzindo uma vela de cera de abelha Silvestre, e a medida que ia sendo queimada exalava um cheiro agradável que somado ao cheiro do incenso aromatizava a rua do Maranhão e o olfato da velha moradora.

Vendo isso, Prisilina, ficou atônita, faltaram-lhe as pernas, as mãos trêmulas, não conseguiam atingir o rosto para enxergar as lágrimas que persistiam escoar pelo rosto cheio de rugas. Os cabelos, estes nem pensar, estavam todos arrepiados como se quisessem espetar caju.

A cena foi aterrorizante ao extremo, mas o estado de choque foi pior ainda, quando a última pessoa do cortejo, se desprendeu do grupo e saiu em sua direção. Neste momento, Prisilina se vale do inconsciente, mesmo com dificuldades eleva o pensamento até Deus, clama por todos os santos conhecidos e os que já tinha ouvido falar, para que lhe ajudasse naquele momento difícil.

Trêmula e sem ação, viu que era inevitável o encontro. Em pensamento reza o credo e a oração de Maria valei-me, tempo suficiente de fazer a invocação as almas penadas:

Por três vezes fez a Invocação:

─ Quem pode mais que Deus?

A pessoa da procissão, não respondeu nada, mas faz um gargarejo tão grande como se uma força superior lhe dominasse.

Prisilina, ainda em estado de choque, continua rezando e percebeu que as rezas aliviaram o penitente.

De forma brusca, o penitente, entrega a vela a Prisilina e com uma voz rouca e atrapalhada diz:

─Amanhã, por estas horas querem de volta e se retirou, caminhando de costa, mantendo o conhecimento popular que alma nenhuma dá das costas para alguém.

Prisilina, recebeu o lamparina acesa e para aumentar o choque, percebeu a metamorfose não era mais uma vela, e sim um fêmur humano. Com isso, a moradora da rua do Maranhão, cai desfalecida. Enquanto isso o cortejo entra na igreja N.S. do Ó, ao som da matraca. Logo após Prisilina vai voltando o normal, escuta o canto do galo e o mugir das vacas de Dona Maria Luiza que morava no outro lado da igreja na atual Rua Major Leite Pereira, próximo à Casa Grande e a Cadeia Velha.

Cambaleando, Prisilina consegue levantar, retorna ao leito de dormida, debulha mais um Rosário de Nossa Senhora e adormece.

No dia seguinte, bem cedo ainda, vai até a casa do Cônego Acylino que ficava na atual Rua Ivete Veloso, e relata todo ocorrido a sacerdote. Ele por sua vez aconselhou ela cumprir o pedido, mas para isso precisava encontrar uma criança de braço por nome Maria, para entregar a vela/osso, mas não conte nada a mais ninguém, para que a notícia não se espalhe.

Assim Prisilina fez, conseguiu uma criança por nome Maria e recolheu-se em casa, aguardando o dia passar o que provocou curiosidade aos demais moradores da Rua do Maranhão e adjacências, nem mesmo Elentéria, amiga e confidente de Prisilina ficou sabendo do acontecido.

Naquele dia a rua do Maranhão viveu um silêncio intenso, alguns moradores perceberam por ser um período de Semana Santa, outros nem tanto, se Prisilina não apareceu, algo de inusitado deveria ter acontecido para deixar a vizinha fofoqueira reclusa em casa, não sabendo eles que Prisilina, estava era em apuros com coisas do outro mundo.

O dia era como se os ponteiros do relógio em vez de marcar os minutos, indicava era os segundo, mas o tempo passava. O entardecer foi inevitável, na hora do crepúsculo, Prisilina preferia a Aurora, mas num passe de mágica, ouviu o canto rouco da coruja anunciando a noite.

A menina Maria, já estava sob os cuidados da moradora da Rua do Maranhão, aguardando o momento certo de entregar o “osso vela”, ao penitente da procissão.

Na hora certa, lá para as tantas da madrugada, Prisilina e a criança Maria, se prostram sob a janela do frontal da casa, quando tudo ficou como dia anterior, barulho, nem dos grilos das margens do rio Catinguinha. O som da banda de música já penetravam seus ouvidos, a fumaça do incenso já subia ao céu e cheio atingia o olfato. Era a procissão que se aproximava, Pálio, Padre conduzindo o ostensório e os penitentes vestidos de túnicas brancas e com velas acesas rumavam em direção da Igreja de N.S. do Ó, quando o último se desprende e se dirige para a casa de Prisilina, esta já pronta para entregar o osso vela, como havia sido combinado.

O penitente chegou, ouviu a saudação de Prisilina:

─ Quem pode mais do que Deus (3 vezes)

O penitente responde:

─ Ninguém

E a menina Maria, efetua a entrega o osso vela. O penitente recebe e resmunga, situando os olhos, com aquele olhar de assombração.

─Foi o que te salvou! Estas são as horas mortas, onde os vivos devem estar dormindo e os mortos em penitentes. Dizendo isso, se retira da mesma forma que a anterior, de costa, porque a alma não mostra as costas para nenhum ser vivo, acompanhou o cortejo, que entregou na igreja só Deus sabe para fazer o que. Prisilina, pós este momento, recolheu aos aposentos para tentar dormir, mas para sua surpresa, no outro dia encontrou uma mensagem escrita num pedaço do osso vela que havia se desprendido, com o seguinte texto: a história não acabava aqui, este pedaço de osso, ficará com você para entregar as pessoas, em forma de vela, sempre nas quartas-feiras da Semana Santa não só neste espaço da rua do Maranhão, mas em qualquer parte desta cidade, tanto, que uma pessoa que mora na Rua São João, numa certa quarta-feira de Procissão, viu a procissão passar,  vinda das bandas do Valentim. Por isso em noite de quarta-feira da Semana Santa, a conhecida quarta-feira de Trevas, em Valença do Piauí, não receba vela das mãos de pessoas estranhas, porque pode ser a Prisilina, metamorfoseada de pessoa comum querendo lhe entregar a vela osso e a maldição ficar com você. Cuidado! A Prisilina, não é raça de gente, não se deixe levar porque ela é bem comunicativa e o mais difícil na atualidade é uma criança com o nome Maria.

 


                                      Desenho: Prof. George Barros





                                               Foto: Acervo Teatrólogo - Raimundo Barbosa




Foto: Acervo do Teatrólogo Raimundo Barbosa




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